terça-feira, 19 de março de 2013

Hora de Dormir parte 8

Deus amado, aquilo sabia meu nome! Para mim era como se ele soubesse quem eu era de alguma forma, fazendo assim de mim um alcance ilimitado. Que na verdade eu nunca pude me livrar dele. Que ele poderia me matar a qualquer momento.

Algo de repente chamou minha atenção, um movimento acompanhado de rufar de pano. Eu já sabia de onde se originava aquela rítmica e agitada voz.  Eu já sabia por que estava abafado e difícil de decifrar. Agora eu podia vê-lo, apenas alguns metro de distância.

De pé.

De pé atrás das cortinas.

Lá fora a lua estava em sua ascendência, e enquanto seu brilho não podia penetrar inteiramente o tecido grosso, fracamente, a luz mal podia delinear a coisa entre a minha janela e as cortinas. Eu não posso expressar a estranheza que me dominou, então. Minha ansiedade e o terror tinham aumentado, mas uma compulsão incomum, uma sensação prematura tomou conta de mim.

Eu tinha que ver o que era.

Eu dei mais um passo hesitante em direção às cortinas. A cortina oscilou ligeiramente, como se fosse apanhada por uma brisa, mas eu não podia dizer que se deveras o movimento tinha sido feito pelo vento ou pela mão da coisa que se escondia atrás da cortina.  Eu já estava perto o suficiente para ouvir sua respiração ofegante, o barulho gosmento de algum tipo de líquido vindo de sua garganta a cada inalação

Era isso.

Eu iria confrontar a monstruosidade do meu passado, o atormentador da minha infância, esse maldito covarde. Levantando a minha mão direita vagarosamente, eu acidentalmente toquei o tecido da cortina, causando uma onda súbita que fez o pano se dividir momentaneamente. Eu engasguei. Pelo meio da fenda que se foi feita por apenas um momento, eu o vi.

Meu Deus, como eu posso descrever o que estava lá de pé? Até agora, eu fecho meus olhos rezo para poder apagar isso da minha memória. Aquilo tremeu e se balançou enquanto continuava a murmurar, repetidamente uma frase indecifrável, soando como uma bizarra mistura de várias línguas. Sua pele mole esticada sobre uma estrutura de ossos frágeis e proeminentes; vértebras, costelas e até órgãos internos praticamente salientados através da fina camada de pele, magro, pálido, com núncias de rosa, e parecia como se tivesse uma casca machucada em volta do corpo.  Mesmo parecendo desnutrido, com o estomago distendido e sua aparência ossuda, não diminuía a sensação que a coisa tinha a capacidade de exercer uma tremenda força bruta, para matar qualquer uma de suas vítimas. 

Meu estomago ficou revirado, um cheiro estranho tomou conta do ar, e enquanto a coisa murmurava e sussurrava na escuridão, eu não podia deixar de sentir uma pequena compaixão pelo desgraçado, tremendo na noite, como se fosse vítima da fome por muito tempo.

Rapidamente voltei a razão e percebi que aquilo não era para se ter pena, e sim ser temida. Não para ser entendida, e sim exposta. Não estava tremendo porque estava frio, estava tremendo de excitação, como um drogado ansioso por sua próxima dose.

De pé, contemplando o que eu tinha acabado de ver pelas cortinas, mais uma me preparei para retirar sua proteção e revelar ele pelo o que ele realmente era; um vândalo de coração congelado, um vagabundo do pior tipo, um marginal purulento que queria só o próprio prazer.

Quando eu estava levantando minha mão mais uma vez para mexer as cortinas, algo chamou minha atenção. Seus sussurros confusos que saiam espremidos por aquela boca podre, se tornaram quatro palavras que fizeram a frase mais terrível que eu já tinha ouvido.

"Olhe atrás de você."

Um respirar gélido deslizou pelo meu pescoço.

Por um momento eu congelei, mas o amor é um motivador poderoso. Se eu estivesse sozinho, o medo teria tomado conta de mim, tirando qualquer possibilidade de força da minha mente, mas Mary estava dormindo no mesmo quarto que a coisa; proteger alguém que eu amo daquela merda era a única coisa na minha mente.

Me virei lentamente e enquanto fazia isso, podia ouvir no ar um chiado ofegante, algo gemendo. Enquanto eu estava ainda me virando eu pude ouvir o cheiro da respiração, um cheiro de praga, um cheiro de morte pairava no ar. Então eu ouvi outra voz. Não era a voz daquele monstro, e sim a da Mary. Ela deixou sair um grito que me assustou e agoniou a minha essência. Um grito que vai me assombrar pro resto da minha vida.
Eu me virei rapidamente e pus meus olhos da coisa, mas não estava atrás de mim, estava na cama! A coisa se contorcia entre uma voz rouca, chiando de prazer, sua coluna vertebral curvada por dentro de um pano podre, rasgado e destruído, em uma vã tentativa de parecer um pouco humano.

Mas, era aquilo humano? Tinha alguma vez sido humano? Ou era algo tão vil, tão desprezível, tão completamente e dolorosamente desprezível que jamais nenhum homem ou mulher poderia decifrar?

Eu avancei à ele, agarrando-o, batendo e puxando aquilo com toda a minha força, a sua pele escorregando de minhas mãos. Ele apertou e forço o rosto de Mary no travesseiro com alegria. Com sua outra mão arrancando a camisola, com seus dedos longos e sedentos acariciando sordidamente o corpo nu de Mary.

Os gritos de Mary foram abafados pelo travesseiro e eu comecei a ficar com medo que ela estivesse se sufocando.

Eu berrei, eu gritei, eu implorei para que a coisa deixasse ela em paz, para que me pegasse, que fizesse o que quisesse comigo, mas isso apenas serviu para animar o demônio e que fizesse coisas piores. Ele estava machucando, cortando... minha linda Mary. 

De repente a coisa parou de atacá-la, mas ainda mantinha sua mão magrela e ossuda na parte de trás da cabeça de Mary, empurrando ainda mais seu rosto no travesseiro. Eu tinha minhas mãos em volta de seu pescoço pútrido, tentando fazer o melhor que eu podia para estrangular o animal, mas meus esforços eram em vão. A sua estrutura frágil desmentia sua força avassaladora. Eu assisti o maldito correndo os dedos pelo cabelo de Mary, lentamente, quase como se acarinhasse-a.

Eu podia ouvir o girar e o craqueamento de osso, o estalo de cartilagem, o estalido dos tendões.

Graças a Deus não estava vindo de Mary! Eu já estava nas costas da coisa, com o braço em volta da garganta dele, meu queixo esfregando contra a pele nojenta de seus ombro. Quando sua coluna cavou fortemente em meu estomago, a coisa torceu o pescoço de uma forma totalmente desumana. Seu pescoço deu estalo e ele gemeu sob a tensão de cada movimento,  como se estivesse impedido por mil anos de atrofiação.

Agora estava olhando diretamente para mim.

Eu aumentei meu controle, e xinguei, gritei, e eu teria arrancado sua garganta se eu pudesse, mas foi tudo em vão, já que continuava  a correr os dedos esqueléticos pelo cabelo de Mary, me olhando com grande indiferença.

Eu acho que nunca vou realmente me recuperar do som que foi proferido através  do que eu supus ser uma tentativa de sorriso, suspirando ofegante, grunhindo, algo que chegava bem perto de uma risada sinistra vindo de outro mundo.

Seus olhos começaram a me encarar profundamente quando nossos rostos se encostaram. Eu nem conseguia ver meu reflexo; Duas bolas de vidro, de um negro profundo, sem nenhuma luz, alegria ou amor. Estava me olhando como se desejasse falar algo, como se estivesse tentando me comunicar uma simples ideia.

Malícia.

Com um movimento violento e doloroso, arrancou um punhado de cabelo da cabeça de Mary, deixando uma ferida aberta atrás da cabeça dela. E em seguida ele sumiu. Mary não gritou, apenas choramingou.  Eu liguei a luz da cabeceira, mas nenhuma palavra de cuidado ou simpatia podia consolá-la.

Ela chorou incontrolavelmente.

A cama estava ensopada com o sangue que tinha escorrido dos cortes e arranhões de suas costas e da enorme ferida da cabeça de onde o cabelo tinha sido arrancado. Eu a abracei, falei que tudo ficaria bem; e então ela me olhou.

Olhando para seus olhos que estavam cheios de lágrimas, eu sabia de imediato no que ela estava pensando. Ela pensou que eu tinha a atacado, que eu tinha feito aquelas coisas terríveis com ela. De todas experiências que eu tive, o olhar traído, de desprezo e nojo no rosto de Mary será pra sempre o mais doloroso.

Ela foi embora.

Depois de se recompor, ela juntou algumas coisas e saiu. Eu tentei explicar, eu tentei contar tudo à ela, tudo que estava acontecendo, mas ela não quis me ouvir. Quem acreditaria em tal história absurda? Ela simplesmente disse que não iria chamar a policia, mas se eu tentasse entrar em contato com ela de novo, ela o faria. Para ela, eu era o agressor. Quando ela se foi, se virou para me olhar mais uma vez e se desfez em lágrimas.

Agora eu sei que a perdi para sempre. A mulher que eu amo mais que tudo nesse mundo pensa que eu sou um ser humano perturbado e violento.  Se ela pudesse apenas entender que a coisa que fez aquilo não era nem humana, e se um dia foi, tinha já deixado a muito tempo sua natureza.

Era cinco da manhã quando Mary foi embora; agora são nove horas. Eu estou sentado aqui na luz fria do dia na minha cozinha, escrevendo para que eu não me esqueça do que ocorreu, para que as pessoas entendam, para que Mary entenda, que seja lá o que aconteça, qualquer coisa que ocorra daqui pra frente, foi aquela maldita criatura da minha infância, daquele quarto estreito amaldiçoado que por todos esses ano tinha despejado sua miséria em mim; em nós.

Devo dispensar o sentimento agora. Eu poderia, facilmente, ficar sentando aqui de luto pela perda da minha relação com Mary, ou eu poderia me permitir a ficar com muito medo; não fazer nada. Mas isso não vai acontecer.

Eu posso ouvir a risada dos filhos do meu vizinho do lado de fora. El fases diferentes da minha vida, eu me lembro de ter o mesmo sentimento de felicidade e alegria de algo como simplesmente brincar com amigos, escalar uma árvore, beijar a mulher que eu amo, ou até mesmo cair no sono na cama para sonhar com algo bom, na segurança de uma casa de uma família feliz. Memórias, memórias... apenas lembranças. Temo que nunca vou poder ter essas experiencias de novo. Essa coisa me destruiu. Mas estou decidido. Seja lá o que esse desgraçado tenha guardado para mim, o que quer que seja suas intenções comigo., eu não vou permitir que essa coisa prejudique outra pessoa novamente, ou invadir a vida de outra criança, como tinha feito comigo a muito tempo atrás.

Devo ir agora, porque há muitas coisas que devo fazer antes do anoitecer, antes dele voltar. Meus planos tem de ser feitos e com alguma sorte eu espero que funcione. Eu gostaria de dizer que você lerá mais de mim em breve, mas acho pouco provável. Espero que você entenda que tem de ser feito.

Porque essa noite, eu vou matá-lo. 
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