terça-feira, 4 de março de 2014

A Fotografia


Ouve o barulho do lado de fora, e desvia a atenção do bordado que já estava fazendo havia algumas horas. As mãos davam voltas em torno de si mesmas. Uma borboleta clara, de uma cor azul vibrante nascia do controverso cruzamento de fios de seda na toalha branca e virgem. Nada mais era do que um presente à filha, sem motivo, apenas uma lembrança inofensiva pelo seu aniversário. Talvez ela até pudesse tê-lo usado para secar os pratos de porcelana depois de lavados. Imaginou se ela gostaria do presente quando o ganhasse e o visse. Mas, por enquanto, havia apenas o barulho de passos distantes sobre o alpendre amadeirado. Passos fortes e resolutos. Passos que se silenciam, que cedem lugar aos punhos. Que batem na porta.

A cadeira de balanço se mantém indo e voltando, na inércia do balançar, trazendo a sonolência recorrente; as batidas na porta cessam e voltam, cessam outra vez. Hoje em dia já não há o respeito para com os idosos, já não nos deixam em paz, pensa ela. Com idade avançada, penoso é levantar-se e receber convidados, mesmo quando esperava-os. Mesmo naquele momento, no limiar da tarde. As batidas na porta não foram esperadas, ela se levanta, deposita o inacabado bordado e os óculos sobre o tampo do piano. Devagar, a mão recortadas de veias roxas, toca a maçaneta. Gira-a. Puxa.

Um belo uniforme é o dono dos punhos. Cor azul-céu-limpo, o distintivo reluzente. Se ela esperava alguém, de certo não seria um homem da guarda. Pensa e olha-o com olhos bondosos após o rigoroso ritual de cumprimento a uma dama, e o faz um convite para o chá, que ele declina, e ri. Faz tempo, meses, anos, que ela não ouve um riso ou mesmo fita um sorriso. Um sorriso verdadeiro e humano. Na casa havia fotografias; alguns fotografados mostram os dentes amarelos num desbotado sorriso. Mas não é a mesma coisa, não é? Um sorriso mortificado e preto-e-branco é como uma mentira mal-contada.

O moço falava coisas desconexas, ali de pé.  Falava sobre um telefonema? O que era um telefonema, por Deus? Será uma nova peste que veio nos dizimar? Deus a mandara para assolar nossos pecados infames?  Enquanto falava, o moço gesticulava. O calor era estranho naquele período e talvez por isso suava de escorrer pela testa e pescoço. À medida que falava, ia ficando mais sisudo. E, de nada adiantava, ela não escutava muito bem havia uns bons 40 anos, ainda mais do lado de fora. E agora, suas frágeis pernas centenárias clamavam por descanso. De pé não é a melhor posição para se conversar, seu moço.

Ela o convida para entrar, e dessa vez aceita, desejando sentar-se numa poltrona grotesca que vê no pé da escada que dava para o segundo andar. Ela diz que a sala de banho fica depois do corredor, oposta à cozinha, e que poderia usar se quisesse. Mas ele agradece e acomoda-se na poltrona. Ela senta-se de volta na cadeira que balança, põe os óculos e observa o moço de azul. Azul da cor da borboleta. E sorri.

Seus olhos míopes a impediram de ver o que agora, com as lentes grossas dos óculos, notava: ele possuía um bigode fino. Era sua opinião que todos os bons moços deveriam ter bigodes, e, de preferência, bem-cuidados. E aquele ali tinha feições agradáveis, agora que as via de perto. Um rosto redondo e olhos argutos. Ele parecia, sim, e era, um bom moço, que ainda gesticulava que ainda falava.

Ele estranhamente não parecia à vontade. A todo instante procurava um novo modo de acomodar-se à poltrona. No silêncio do interior, ela agora percebia melhor o que ele falava, e era sobre os vizinhos. Eles reclamaram de alguma coisa, algum odor odioso e fétido. Havia sido ontem à noite que eles telefonaram e o chefe da polícia prometeu mandar alguém verificar. Agora sim, ela entendia a presença do moço ali. Ele viera saber se uma doce senhora saberia dizer se aquele cheiro a incomodava e se sabia dizer de onde ele poderia ter vindo. Ela balança a cabeça negativamente, mais pelo peso da cabeça do que pela negativa em si.

Mas ela negava, sim. Afinal, não sentia cheiro algum. O moço concordou e deixou os olhos navegarem pelos aposentos e olhava as fotos antigas penduradas à parede, amareladas. Em uma delas, a maior, havia quatro pessoas. Duas moças, uma mulher e um homem. O homem tinha ralos cabelos e uma barba negra. Os olhos fitavam um horizonte inexistente. As duas moças eram quase idênticas, a única diferença perceptível era uma pinta em cima da sobrancelha esquerda. E a mulher, cinquenta e dois anos depois daquela foto, estava sentada à cadeira que balançava silenciosamente.

Ela nota que ele se interessara pela foto e conta-lhe sua história. De fato, aquela era sua família. Fora, seria o termo mais definitivo. Aquela seria a última foto das outras três pessoas. A senhora maneou a cabeça e começou a história. Ela contou que, em certo dia, decidiu dar um passeio pela vizinhança com uma amiga, já no crepúsculo. Ela não planejara se demorar, nem pensar. Em algum momento na próxima hora o esposo voltaria do trabalho e ela queria estar em casa para recebê-lo. As filhas estavam lendo, cada uma seu livro, quando as deixara para o passeio.

Ela chamou-as para acompanhá-la, mas não quiseram. Não insistiu e foi ter com sua amiga, que morava duas casas depois, para a direita. O trajeto findou-se em trinta minutos e o crepúsculo da tarde já havia passado. Deixou a companheira de passeios em casa e rumou para sua própria residência. Notou algo diferente, ao perceber a porta de entrada centímetros aberta. Ela diz que pressentiu algo ruim naquilo. E não estava errada. Os livros que as meninas liam, quando ela os viu depois de voltar, estava esparramados, abertos e solitários. A que possuía a pinta estava de bruços e um lago de sangue escuro circundava a cabeça e os cabelos emaranhados no carpete. A senhora, naquele dia e momento, desabou no chão a gritar, chorar e chamar seu nome, mas a filha não existia mais.

No desespero selvagem, lembrou-se da outra filha, que ali não estava. Correu pelos cômodos da casa e não a encontrou. Desabou no chão mais uma vez, abraçando à filha e sujando-se de sangue. Mais gritos e lágrimas. Alguns vizinhos escutaram os gritos e vieram saber o que se passava. Alguns, de estômago mais fraco vomitaram, ela se lembrava. Outros tentaram removê-la daquele abraço necrófilo e trazê-la à realidade. Não conseguiram de imediato, mas, algum tempo depois, ela cedeu e a filha foi devidamente velada e sepultada no dia seguinte. A foto, aquela mesma que estampava a parede da sala, havia sido tirada no dia anterior ao daquele acontecimento macabro. Seu marido nunca foi encontrado. Assim como a outra filha também não. Isso ela contara ao moço azul-borboleta.

O policial ouviu toda a história com atenção, e agora se levanta e agradece a compreensão e a ajuda. Ele tinha ficado chocado com a história e preferiu não entrar em detalhes, para não despertar mais lembranças desagradáveis na pobre e bondosa senhora. Ela pergunta se, antes de ir, aceita um chá. Estava quentinho ainda. Mas ele, mais uma vez, rejeita com toda a educação de um bom guarda municipal. Ele se despede e as botas fazem o chão ressoar com os passos, do mesmo jeito que fizera ao chegar. Ela fecha a porta e retoma a borboleta que deixaram sem parte da asinha direita.

Enquanto ela borda, a memória fraca percorre a história que contou para o moço. Não gostava de mentir, mas não havia outro modo. Ela sentiu remorso por não contar-lhe toda a história daquele dia, daquela foto. Ela gostou do moço. Não mentiria para ele. Em outras ocasiões. E na verdade, a outra filha, foi encontrada.

Cinco dias depois do enterro da que primeiro fora encontrada, havia um cômodo que ela se esquecera de olhar. Não sabia bem o porquê de tê-lo esquecido, mas isso já não importava, depois de todos esses anos. O cômodo ficava ali, bem abaixo do carpete e da cadeira de balanço que fazia o chão ranger os dentes de madeira. O porão havia sido esquecido, e por cinco dias, a moça ficou esquecida lá, apodrecendo no silêncio e com os ratos. Afastou a cadeira, e com um lampião desceu as escadas, tremendo e pedindo a Deus que não a encontrasse. Ela encontrou-a.

A sua pele tinha uma tonalidade cinza-escura característica do post morten, assim com o odor seco de carne putrefata. Com as vestes rasgadas, as pernas abertas num ângulo impossível e as partes íntimas dilaceradas, a moça parecia ter sido violentada até a morte, ali mesmo, no chão de terra socada. Em silêncio, a mãe chorou e pediu clemência. Pegou a filha e a levou para cima. Na claridade da sala, com as janelas fechadas, percebeu marcas roxas nos braços e nas pernas da filha, e uns dois dentes faltavam. Enquanto ela limpava as roupas claras da terra que as manchava, lágrimas de desespero e desconsolo desciam e, geladas, tocavam o corpo morto, que jamais as sentirão tocá-lo.

A senhora dá um impulso com os pés para não deixar a cadeira parar e já havia escurecido bastante quando a borboleta ficou pronta e parecendo poder levantar voo. A borboleta bordada. A borboleta que nunca tivera um casulo. Sentada e ainda revivendo as memórias dolorosas do passado, ela se sente íntegra e pronta. Sente até um pouquinho de fome, afinal, desde o almoço simples, nada sólido havia sido ingerido. Apenas o chá. O chá que o moço dispensara. Será que ele teria gostado da borboleta? Combinava com ele. Uma pena que não contei-lhe a verdade. Ela pensa no moço por mais uns momentos, e deposita o bordado sobre o piano, que há anos ninguém toca.

Como vinha fazendo nos últimos 52 anos, sempre que a escuridão e as ruas se apagavam para a noite, a velha senhora se levanta e a cadeira dança sozinha por uns instantes.  Ela foi afastada de seu lugar e quando o carpete foi dobrado sobre si, revelou um alçapão que dava acesso ao porão. Ela caminha com calma até a cozinha como se tivesse se esquecido de algo, e acende o lampião a querosene. Ela volta à sala, pensando se tem forças suficientes para descer e subir aquelas escadas por mais uma vez. E quando chega ao alçapão, abre-o. Ela pega o tecido com a borboleta azul bordada e se esforça para descer. Até que, para a idade que tinha, ela aprendera a descer aqueles degraus, em todos esses anos. Pé após pé, ela toca com o chinelinho o chão duro do porão e se vira para iluminar o seu interior.

O cheiro de virar a alma do avesso era o mesmo de sempre. Agora, praticamente só o corpo com os ossos cinza à mostra restava da moça que um dia a velha chamara de filha. Seus restos quase destituídos de carne jaziam placidamente no solo, as mãos unidas no lugar onde antes existira uma barriga, e agora só havia vísceras indefiníveis, em meio à poeira e podridão. Os ratos viviam rondando o corpo e frequentemente o violavam. Foram eles, provavelmente que lhe comeram os dois olhos e um grande pedaço do nariz, ao longo de todos aqueles anos. Mechas de cabelo haviam-se desprendido do couro cabeludo e, esparramadas em volta da cabeça faziam o papel do sangue de outrora da irmã.

A defunta ali era a dona do piano, fizera anos de aula e nunca mais poria os dedos em quaisquer teclas que pudessem existir. Mas, ao invés delas, aquelas mãos de ossos quebradiços, ainda tocariam uma possível última oferenda. A velha agacha-se o melhor que pôde, acariciou a cabeça podre da filha e beija-lhe a testa. Pequenos pedaços de pele enegrecida e poeirenta grudam-se em seus lábios. O odor da morte não faz mais efeito algum e ela acreditava que ele havia deixado de existir. O que ela não sabe é que, com o incomum calor que vinha fazendo nos últimos dias, os vizinhos haviam notado um cheiro mais forte e chamaram a guarda. Com o carinho e o cuidado que só uma mãe dispensaria ao próprio filho, a velha separa as mãos outrora unidas e lá deposita o pano bordado com a bela borboleta azul. E logo após se pergunta se a filha teria gostado do presente de aniversário que, com tanto amor e cuidado, ela bordou.
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